Tinha de continuar com calma. Os truques de olhar pelo reflexo das montras ou dos espelhos retrovisores dos carros mais antigos davam-me alguma segurança em relação a ninguém me estar a seguir. Já tinha desligado todos os dispositivos electrónicos e aqueles que não conseguia desligar tinha-me "esquecido" deles no escritório.
Apesar disso, usei várias entradas e saídas de áreas com mais gente, mudei várias vezes de metro e, ao fim de meia-hora, estava bastante mais calmo.
Independentemente do calor do verão, ora sentias suores frios ora ficava encharcado em suor.
Tinha combinado com o meu pai encontrar-me num determinado local. Confirmei com ele de manhã: "Pai, é no sítio onde nos encontrámos da ultima vez. Lembra-se onde?", felizmente interrompi-o antes de ele me responder"..então é mesmo na rua ...." - os meios de comunicação electrónica não são seguros.
Já tinha confirmado com uma semana de antecedência o que queria. Telefonei para um número de uma casa comercial muito inocente e que vem na lista e utilizando as palavras chave referentes a este mês, informei que queria a opção 3 - "Sim minha senhora, eu tenho versões dessa revista em papel e quero vendê-las. Percebeu bem, 3.". Espero que tenham entendido pois esta opção é rara de obter.
às 12h30 vi o meu pai ao longe no local de encontro. Parei e observei em redor dele a ver se existia algum estranho. As câmaras de observação lá estavam (como em todo o lado) mas, se actuássemos naturalmente os programas de IA não seria activados e não chamariam o operador humano.
Aproximei-me e abraçamo-nos. Já não o via fazia 2 semanas mas o velho ainda estava rijo, para os seus 93.
"Filho, esta será a melhor prenda de anos nos últimos 20". - "tábem pai, não fale. Sabe como isto é...".
Entrámos na loja e eu aproximei o meu cartão de assinante ao detector, mas digitei o código alternativo.
Dirigimo-nos para a sala de espera, o meu pai pegou em algumas revistas em papel - numa reparei que fez algum esforço para não lhe virem as lágrimas aos olhos - era uma BD com uma capa muito colorida mas lisa e bastante desbotada.
Finalmente acendeu-se uma sequência de luzes pré-combinada num painel publicitário de brinquedo (fazia parte da decoração apropriada ao local) e nós entrámos por uma porta, com o ar mais natural do mundo, embora o meu estômago estivesse cheio de borboletas e o meu pai fosse aos saltinhos, com um andar quasi de gaiato.
Entrámos, a dona da casa deu-nos as boas-vindas e acompanhou-nos a uma pequena sala com uma pequena mesa de madeira, onde nos sentámos em cadeiras de madeira (mesmo madeira e não plástico a imitar).
Passaram 5 minutos e chegou a opção escolhida.....
Um prato de Bacalhau cozido com batatas, hortaliça, grão e ovo, acompanhado com pão casqueiro e uma garrafa de vinho branco fresquinho. Temperámos com Azeite que cheirava a campo, vinagre de vinho e pimenta preta que me fez espirrar.
Ao meu pai vieram lágrimas aos olhos. Começámos lentamente a comer, a saborear sabores raros, a enrolar a comida na língua para todos os sabores serem bem absorvidos, a deixar o vinho escorrer lentamente pela garganta, a molhar o pão (ainda estava morno!). Meu Deus isto é BOM.
No fim um pudim caseiro extraordinário. Agora também a mim me vieram lágrimas aos olhos.
Para terminar em beleza, um café e um cigarro (só o meu pai é que fumou e não gostou muito do exaustor individual com filtros que lhe colocaram ao pé e que começou a trabalhar no máximo).
Agradecemos e saímos. Claro que não tornaria a ir àquela casa. No mês seguinte (por questões financeiras e de segurança não podia fazer isto mais de uma vez por mês) seria certamente outro local, outras palavras-chave, outros arranjos.
Cá fora o mundo continuava na mesma, escuro, desinteressante, com toda a gente a olhar por cima do ombro para as câmaras de vigilância. Mas para nós o sol brilhava um bocadinho mais e as cores estavam mais vivas.
O meu pai agradeceu-me com uma lágrima ao canto do olho: "Filho, foi a melhor prenda de anos. Não me importo agora de morrer depois de comer tudo o que eles dizem que faz mal nesta refeição. É mentira que faça mal".
Despedimo-nos. Tinha de voltar rapidamente ao emprego porque as 2 horas que eu disse que precisava para acompanhar o meu pai está mesmo nas últimas. Claro que me vão descontar no ordenado, mas valeu a pena.
Desde que em 2005 as leis de direitos de autor se aplicavam a tudo, que era preciso autorização para fazer refeições que não fossem do domínio público. Era frequente ir gente para os campos electrónicos de reeducação porque um vizinho tinha denunciado uma refeição de "Bacalhau à Zé do pipo" (trademark do empresa americana), Esparguete à Bolonhesa (trademark dos italianos), etc.
Depois a UE dos 33 disse que muitos dos nossos produtos regionais e naturais podiam provocar doenças (desde o pão casqueiro, ao vinho do Alentejo, Dão e outros, passando pelos doces, queijo da Serra, etc.).
Finalmente os contínuos governos de direita tinha reduzido a hora de almoço de tal modo que não há tempo para sair da secretária a não ser para ir à casa de banho. E as câmaras de vigilância contabilizam a quantidade do nosso trabalho ao minuto. Os sistemas de IA contabilizam a qualidade.
E assim surgiu mais uma actividade secreta em que donas de casa conhecedoras das receitas tradicionais, preparam refeições para clientes escolhidos
Claro que isto é só para o Zé Povinho.
(Documento enviado pelo meu filho por time-mail, desde 10-6-2041)
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