quinta-feira, julho 07, 2005

Retirado do Dragoscópio

O que é preocupante, mesmo preocupante, na cultura deste país -sendo que desta deriva tudo, das artes às políticas, passando pelas ciências-, não são os analfabetos numerosíssimos, nem os semi-analfabetos ainda mais pululantes. Esses, todos esses, regra geral, lá se desenrascam, fazem das tripas coração, transcendem-se conforme podem. São conhecidos até casos meritórios, quase miraculosos. Não, a minoria sabichona, doutora, vanguarda da classe analfabeta, essa, em números galopantes, é que impressiona, alucina. Estudaram, aprenderam as letras, meia dúzia de números; infestaram, em regime de manada, universidades, faculdades e politécnicos. Mestraram-se e doutoraram-se, alguns, os piores (regra geral os pajens sabujos, as cortesãs, os acólitos). De aprendizes do servilismo, da papagaeira, da mimese ao pior nível da tropa macaca, tornaram-se mestres, campeões. A praxe virou escola e, por fim, a toque de rasgos inteligentes dignos de sargentada marteleira, de açougueiros alfarrabistas, a escola virou academia, antro, seita exotérica. E o problema -do país, da cultura, deles próprios-, foi precisamente esse. Mais valia que tivessem porfiado pela via honesta, agarrados à enxada ou à herança; fazendo algo de útil à comunidade ou pagando honestamente pelos próprios vícios, pelas putas. Sempre ginasticavam o corpo, a musculatura, o esqueleto, ou a gaita. Sempre poupavam o ralo da História e os cofres do Estado. Exercitavam o que tinham, desenvolviam as faculdades intrínsecas que os preenchem. E não, ao invés, de través e revés, aquilo que não têm, nem querem ter e só lhes serve de móbil para cultivar a raiva a quem tem; e o despeito, a inveja, o temor de ser descoberto, desmascarado, apeado do trono usurpado. Valia mais, mil vezes mais, serem dignos analfabetos do que infames analfabrutos. Gentalha que se serviu dum privilégio, do suor e (quantas vezes!) do sacrifício de pais e avós, do investimento público e nacional, enfim, não para burilar virtudes ou qualidades, mas apenas para aguçar egos, refinar vilezas, aprimorar defeitos ou destilar vaidades bacocas. Antes pobres de instrução, que indigentes de espírito! Assim, nem eles se cultivaram nem as batatas e os campos, que era o que lhes convinha cultivar, pois é a cultura máxima que alcançam e a pátria deles requeria. Pior: agora, é a cultura do país que lhes está entregue a eles (e elas), como o país está entregue à erva daninha, ao mato agreste e aos silvados. Resultado: grassa uma dupla desertificação: a do interior do país e a do interior das cabeças de quem era suposto dirigi-lo. Quer dizer: o deserto de ideias propagou-se aos campos do país. E aos mares. E aos céus. É o vazio em toda a parte. Nem sonhos, nem esperanças, nem vergonha, nem tino, nem ponta por onde se pegue.
Não contente de tocar rabecão, o sapateiro cismou de ser o maestro; não satisfeito com a missa, o merceeiro subornou o padre e trepou ao altar; e o marialva, não lhe bastando ir às putas quis também ir à nação: capacitou-se que se metia a gaita também podia meter a cabeça. Ou seja, meteu na cabeça a gaita, com todas as suas infinitas pintelhices, para gáudio e recreio das suas atávicas e cristalizadas faculdades - a bicefalia invertida e congénita, nem mais-: fornicar com a de cima e raciocinar com a de baixo. Entretanto, a labreguice, que distribuída pelos campos chega a ser pitoresca, amontoada nas cidades, atravancando e emporcalhando academias, salas de espectáculo e ministérios, redunda em mera poluição humana. Coalho pastoso, superficial, flutuante e nauseabundo. Faz as vezes da nata, pois faz. Mas uma nata negra, espessa, mortífera, como a dos grandes derrames. A ocidental praia, convertida em sepulcro de pescadores e marinheiros, está coberta por um manto fúnebre desses.
O badameco veio ser doutor, o borra-botas agora caga-postas. A macaquear os cavaleiros de outrora, também transita por aí armado, empertigado e fátuo. Não com a espada, mas com o grandessíssimo pingarelho. E onde quer que meta o pensamento, com a tramela no encalce, não demora o eco da caverna retumbante que lhe faz oca a rocha craniana. Na ausência de ideias próprias, vale-se do bedelho que mete por toda a parte.
E é esta a tropa fandanga que está aos comandos do regimento... Depois, venham-me cá dizer que o que faz falta é formação, ainda por cima unversitária... Quando o que existe é um sistema instalado de deformação, de torção, de selecção de moluscos e imbecis! Quando a puta da máquina está sabotada, transviada, invertida: não produz homens -quanto mais sábios, pioneiros, espécimes elevados-, só vomita chouriços. Cadáveres adiados que já mal procriam. Porque primeiro há que tratar da carreira, do ego, do cabrão do coiro e respectivas manias -essa novel agremiação de moléculas, joint-venture de células prometida aos vermes, e que os vermes vão já devastando por antecipação! Isso e, mal brotam da cloaca doutorante, porem-se logo a fungar a brisa, a escutar o murmúrio, à cata do prostíbulo onde melhor se possam vender.
Formação? Este país, a nível de mentalidades, está a precisar é dum valente clister!
Essa sim, essa é que é uma prioridade absoluta. Ou, no mínimo, uma dose maciça de anti-helmínticos.
...
PS: E, caso não tenham percebido, não é uma questão de berço nem escola. A massa é igual em toda a parte. Só a embalagem é que muda. O espírito não se adquire nem se herda. Nasce-se com ele, como se nasce com braços e pernas, cabeça e testículos (ou ovários). Ou nasce-se sem ele. Mistérios de Deus e da Natureza. Ide perguntar-lhes porquê. Interrogar é já um claro sintoma de inteligência; tal qual debitar ininterruptamente opiniões e anedotas alarvajadas o é da ausência dela. Sobretudo, quando se mascaram as anedotas de leis, discursos, pareceres técnicos ou tratados eruditos.
Não é nenhum drama não possuir inteligência. Drama mesmo, tragédia absoluta, é promover esse vácuo a espírito. Não é por se multiplicar múltiplas vezes o zero que se alcançam números formidáveis. A incontinência ainda não é uma forma de génio. Por muito que a vendam a peso de ouro.

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