O tio Tomás era visita lá de casa pelo menos uma vez por semana. Fascinavam-me os seus dedos gordos cheios de anéis de ouro, o seu brilhante alfinete de gravata, os seus fatos cinzentos, a sua careca luzidia, o segundo queixo proeminente, o seu bigodinho estilo escova de dentes por estrear, o seu cheiro a água de colónia, o seu hálito a whisky velho e os seus charutos mal-cheirosos grossos como pepinos. O tio Tomás tivera êxito na vida, chamavam-lhe o Rei do Cimento Armado, ao contrário dos seus familiares próximos, todos nós, a vivermos na humilde casa de tijolo onde só se tomava banho quando chovia lá dentro.
Sempre pensei que a única razão da visita do tio Tomás tinha qualquer coisa a ver com a prima Leonor. A prima Leonor era visita constante nos meus sonhos húmidos de adolescente, onde eu fazia longas corridas de motocross subindo e descendo pelas curvas do seu corpo e despistando-me nos seus refegos. Era a minha musa secreta, o caudal do meu rio de lava incandescente.
O tio Tomás tomava-a nos braços gordos, sentava-a no colo elefantino, e prometia-lhe colares de pérolas do Japão e diamantes africanos, carros de luxo descapotáveis, casas palacianas com grades de pontas douradas e estátuas de duendes no jardim, casacos de pele de animais extintos, manjares exóticos em cruzeiros tropicais. A prima Leonor ouvia tudo com muita atenção, e o tio Tomás aproveitava para lhe meter a manápula por debaixo da saia, ou espreitar pelo decote atrevido. A este assédio descarado ela respondia sempre que ia pensar, lançava ao tio Tomás um sorriso provocador e afastava-se bamboleando as coxas e o traseiro deixando-nos a suar frio e com a baba a escorrer ao canto boca. Nessas alturas o tio choramingava a sua infelicidade e solidão, que felizes éramos nós que viviamos numa espécie de condomínio fechado sem preocupações, e com a prima Leonor por perto, e ele um escravo do trabalho, detentor da mui nobre função de transformar o país num moderno e magnífico bloco de betão armado. Depois ia embora, adeus até para a semana, largava algumas notas em cima da mesa da cozinha e dizia à tia Umbelina, olha compra lá uns soquetes à miúda, coitada, e afastava-se ao volante do seu Mercedes preto de luxo, enquanto nós ficávamos à porta a vê-lo ir embora, sem um aceno de adeus ou esgar de saudade. Mal o Mercedes desaparecia no horizonte corríamos todos para a cozinha onde o tio Augusto já estava a contar as notas, a ordená-las por ordem crescente dos números de série, e a colocá-las no seu album de coleccionador, ocupando os espaços vazios referentes aos números de série em falta. Depois mostrava-nos toda a colecção, milhares de notas 10, 20, 50 e 100, um deleite para os olhos. O tio Augusto, o tal que pensava até a cabeça quase rebentar, dava assim o seu devido valor ao dinheiro, embora a tia Umbelina lhe surripiasse algumas notas da colecção em tempos de maior crise e carência. O que sei é que ao longo dos anos a colecção de notas aumentou considerávelmente à custa do tio Tomás e das curvas da prima Leonor, até esta finalmente aceder casar com o tio, já doente terminal com apenas algumas semana de vida. Herdeira de uma considerável fortuna, a prima Leonor ocupa agora o seu tempo livre em entrevistas sobre a sua última lipo-aspiração, deixando-se fotografar com rapazinhos imberbes e semi-nus para as revistas do jet-set. A menina curvilínea e inocentemente provocante da minha juventude transformara-se numa matrona ninfomaníaca de pele esticada conhecida pela Raínha do Cimento Armado.
O tio Augusto desapareceu um dia mais a sua colecção quando o SIS começou a investigar a falta de notas em circulação, e hoje, ao fim de tantos anos, interrogo-me se afinal o tio não seria o principal responsável pelo défice das contas públicas. É que sendo eu um familiar próximo, vejo o meu salário diminuir mensalmente à custa da sobrecarga fiscal, enquanto o país caminha para o progresso transformando-se dia após dia num bloco de cimento armado.
Sem comentários:
Enviar um comentário