quinta-feira, março 03, 2005

Lembro-me como se fosse hoje, a casa de tijolo, o quarto com a cama grande onde dormíamos todos os sete, a cozinha com o soalho esburacado dos tiros de caçadeira que a avó Urzelina usava para caçar baratas, a sanita no meio da sala de jantar com o cestinho das revistas Caras e Ola, o peciché com a dentadura da prima Lurdes no copo de água, a imagem da senhora de Fátima com meio metro de altura e vesga de um olho desde que o Arturzinho o vazara num dos seus treinos de tiro ao alvo, a cave onde apanhávamos o metro para Tegucigalpa, o sótão...
No sótão vivia o tio Augusto, no meio de novelos de cotão e teias de aranha, posters de vaginas de todos os tamanhos colados nas paredes, fotografias da esposa, a nossa tia Ossétia, falecida quando o meteoro a apanhou em cheio no mesmo dia em que tinha ganho a lotaria. O tio Augusto tinha alguma engrenagem mal oleada no cérebro pois quando se punha a pensar, e era talvez o único membro da família que pensava, a cabeça inchava-lhe como um balão até quase rebentar, e depois pegava-me pelos colarinhos e despejava toda a confusão em forma de palavras até a cabeça ficar do tamanho normal. E falava sem parar com a boca encostada ao meu ouvido esquerdo, e dizia
"Estão todos enganados. Todos! Estão à espera de quê? D. Sebastião já se perdeu entre traições a Viriatos e manhãs de nevoeiro, não há nada a fazer. Afonso Henriques meteu a mãe na cadeia por causa da posse de um latifúndio, Cabral enganou-se e chegou ao Brasil arrastando consigo gerações de escravos africanos. Maltrapilhos e criminosos condenados arrastaram-se pelas costas de África e Ásia deixando as suas marcas de sangue por entre as pedras, D. Dinis plantou um pinhal sem contar com os incêndios séculos mais tarde, D. Pedro elouqueceu de amores por uma Inês castelhana, tragédia que atravessa a história tornando a história uma tragédia.
Para este povo tomar o destino nas suas mãos tem de cair na merda mais mal cheirosa, não lhe chegam as bordas da latrina. Foi assim em 1383, foi assim em 1640, 1910, 1974. Os nossos avós andaram a preparar a cama onde agora nos deitamos com os castelhanos, com os ingleses, com os franceses, com os alemães, com os americanos, com eles sempre por perto, a controlar as migalhas que excepcionalmente nos deixam esgravatar do chão, e foi assim quando as riquezas vindas do Oriente engordavam comerciantes que nem à Trafaria iam de barco, que as inquisições nos impediam de pensar noutras coisas senão o medo, o medo sempre presente, o medo do louco João VI e da sua horrível mulher que só de olhar para ela Napoleão teria desistido na 1ª invasão, e nem os ingleses nos impediram de cerrar fileiras na campanha da Rússia ao lado do Grande Chefe, imaginem só, invadidos e soldados no exército invasor, invasor que por cá deixou idéias estranhas de igualdade, liberdade e fraternidade. E em 1755 quando a terra se chateou deste país e o Marquês eliminou sádicamente as forças de bloqueio dos Távoras e expulsou a padralhada para o Brasil. E uma vez mais esta sina de tudo perder quando se tem tudo à mão, esta sina de alimentar pastorinhos, salazares e seus sucedâneos pós-74, esta sina de vazio monarco-republicano que nos come a alma, que nos torna mesquinhos e com aspirações a pato-bravo cheio de notas para encher sacos azuis, que nos torna tão vazios que qualquer Inês de Castro ou Frei Luís de Sousa inspira um triste fado de exportação, único produto genuíno que espanhóis, ingleses, franceses, alemães e americanos não podem absorver. É este o nosso engano, o nosso inferno..."
E o meu tio calava-se de repente, ofegante, com a cabeça vazia e já estável, e recolhia à escuridão do seu sótão, no meio do cotão, teias de aranha, vaginas e fotos da tia Ossétia.
E hoje compreendo como o inferno de que falava o tio Augusto se confundia com a sua própria lucidez.

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