sexta-feira, novembro 19, 2004

O Polvo

Levantei-me cedo. Tomei as habituais papas de sarrabulho ao pequeno almoço, dei a comida ao rinoceronte e sai porta fora. O trânsito, como é hábito, transbordava. Apanhei a diligência 4x4 dirigida pelo cocheiro zarolho e rumei ao Palácio de S. Bento. Pelo caminho, alguns transeuntes tentavam fugir à frente dos carros, não se livrando mesmo assim dos habituais atropelamentos. Três horas e vinte e dois minutos depois estava em frente à escadaria do palácio. Nada mau, para quem mora no Rato. Paguei a taxa ao cocheiro, contornei o imenso buraco que o mais recente meteorito deixou a meio da escadaria, e enfrentei pela primeira vez os manifestantes de tanga que exigiam as facturas do condomínio. Tropecei numa velha inconsciente no décimo quarto degrau, desviei com o punho o marciano que distribuia o jornal ?O Imobiliário?, dei uma cabeçada na senhora com a latinha dos donativos para a compra de mais dois submarinos, e já ao cimo da escadaria abati a tiro o último pigmeu de Sumatra que se atirou a mim a guinchar. O GNR de serviço à entrada levantou os olhos do exemplar dos ?Cahiers du Cinema?, saudou-me com os habituais 22 tiros de canhão que desta vez acertaram em cheio no Cristo-Rei, atirei-lhe 50 cêntimos para o alegrar e entrei no Palácio.
A secretária Elvira cumprimentou-me levantando a saia, deixando à mostra uma bela parte dos seus 208 quilos, o contínuo Zacarias surgiu do nada lambendo o chão pisado pelos meus sapatos, e de pronto abriu a porta do meu gabinete. Dei-lhe o osso da praxe e tranquei-me no gabinete completa e definitivamente só.
Liguei o fax, a ventoínha e o motor a dois tempos. O motor não pegou à primeira. Fiquei fulo e chamei o Zacarias para empurrar. Já não estava. Fora lamber as pégadas ao Ministro da Defesa. Desiludido, deitei-me no sofá e preparei-me para dormir a sesta, apesar de ser ainda manhã. O telefone tocou. Tocou outra vez ainda. E ainda mais uma vez. Levantei-me a custo e fui atender: - Está lá?
Do outro lado o silêncio gritou-me aos ouvidos. ?- Está lá?? ? repeti.
Não sei como foi. Só sei que de repente me vi todo espalhado pelo gabinete. Haviam bocados de mim no tecto, em cima da secretária, no candeeiro, às voltas na ventoínha.
Peguei num rim que estava próximo com a única mão que estava à vista e tentei identificá-lo com o olho que milagrosamente tinha ficado no cinzeiro. - Bonito ? pensei com o que restava do meu cérebro estratégicamente espalmado no centro do mapa de Portugal. - Só me faltava ter pedras nos rins. O segurança entrou a correr no gabinete e estatelou-se ao comprido quando enrolou um pé num bocado de intestino delgado. Bateu com a cabeça na bigorna que estava milagrosamente intacta e ficou-se por ali.
A secretária Elvira entrou de rompante com um batalhão de G.I.´s de colete à prova de bala e lanças de bambu. Reparei que a saia dela já não estava subida.
- Senhor 1º Ministro, o que lhe aconteceu? O Polvo estava lá fora à espera e quando ouviu a explosão enfiou-se no buraco do meteorito. Ninguém o tira de lá agora. O atentado já foi reinvidicado pela Liga de Protecção da Natureza. Quer que chame um médico, sr. 1º ministro?
Foi aí que me apercebi que qualquer coisa estava errada. Gosto muito de estender os tentáculos ao Polvo no meio da desordem do caos de todos os dias. Nunca pensei que ele se escondesse logo à primeira explosão, pois sempre o tive em conta de ser um molusco corajoso. ? Chame o Alberto João. Ele que tire o polvo do buraco. ? ordenei à Elvira que saiu porta fora. Entretanto os G.I.´s estavam entretidos a recolher os meus bocados e riam que nem uns alarves. E logo agora que o Polvo estava tão bem ensinado! Por sorte, o enfermeiro Sampaio não estava em greve e fez-me o curativo. Apesar de estar um pouco combalido, fui ter com as coristas. Quanto ao Polvo, o Alberto João conseguiu meter-lhe o açaime e levou-o para a Madeira.
Lá como cá o Polvo é quem mais ordena.

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