quinta-feira, abril 10, 2008

O barco já mete água e o Comandante continua em parte incerta - IV

-Quero um naufrágio, já!
Assim berrou o Intelectual quando finalmente conseguiu subir ao cesto da gávea pela 1ª vez. No convés os restantes tripulantes trocaram de olhares e encolheram os ombros. A abstinência prolongada pode provocar alucinações e raivas a despropósito. Das duas uma: ou se abria mais um garrafão de tinto para dissipar o nevoeiro mental de que padecia a Tripulação, ou se iria discutir esta tirada impertinente do Intelectual. Discussão iniciada sobre o que se iria fazer, optou-se por abrir o tal garrafão enquanto se dissertava sobre a exigência do Intelectual. Com esta conclusão o 1º Cabo de Serviço à Pipa subiu o mastro de contentamento e mergulhou lá de cima para o convés falhando as brasas do assador por milímetros. O Assador-mor ainda praguejou mas o Protocolo logo o reprimiu enchendo-lhe o copo até ao bordo. Foi decidido parar com todas as tarefas náuticas enquanto de resolvia a questão. O Cabo de Sinais guardou as bandeiras e sacudiu os sinais de fumo, o Decano largou a meio a sonorização do seu filme “Incertezas de uma Pedra no Silêncio de um Rio Dourado”, o 2º (e único) Remador recolheu o remo no coldre, o Toca o Badalo interrompeu a 5ª Sinfonia de Chopin para Badalo e Chocalho, o Pubic Relations escondeu a “Play-Boy” no cacifo, o Disc-jockey pôs o gira-discos em “pause”, o Timoneiro acordou, e o 1º Cabo de Serviço à Pipa subiu mais uma vez ao mastro desta vez para trazer o Intelectual puxado por uma orelha. E com a moderação consentida do Protocolo a assembleia começou.
Não vale repetir aqui os brilhantes argumentos destes tripulantes sobre a exigência do Intelectual. Desde “se o Titanic naufragou nós também temos esse direito” e “marinheiro ou náufrago, não há meio termo”, ou ainda “acorrentem o Intelectual e queimem-lhe os livros”, de tudo foi dito nesta histórica reunião. De tal maneira a discussão foi acesa que o único ponto de concórdia só foi conseguido à custa de um novo garrafão de tinto: precisamente a decisão de abrir ou não esse mesmo garrafão. No final, e já com o mar calmo, foi resolvido deixar a decisão final para o Comandante que, como é sabido, continua em parte incerta.
Já o Decano, com a total sabedoria que lhe confere a sua avançada idade pensou para com os seus botões : “É incrível como esta Tripulação consegue naufragar sem tempestade. Isto é que é auto-suficiência.”

Sem comentários:

Enviar um comentário