sexta-feira, janeiro 28, 2005

A Fraude

Depois de mais um ano encerrado, decidi abrir uma excepção: levantei-me cedo. A vizinha do lado ficou aparvalhada de todo quando me viu a descer no elevador àquela hora da manhã, e até o polícia de giro escreveu uma nota qualquer quando me encarou. Acordei os guarda-costas que vigiavam a rua escondidos no contentor do lixo e lá fomos todos juntos direitinhos ao Boca na Botija. O Silva ainda não conseguira estar sóbrio desde a semana passada e a Lecas continuava dengosa a tentar engatar clientes junto ao balcão, o que é uma tarefa difícil para ela desde que fez a operação aos olhos que a deixou a olhar para quem está à sua direita quando está a conversar com quem está à sua esquerda. Mas foi devido a esta nova qualidade que a Lecas conseguiu entrar para o Partido Socialista, e desconfio que as suas tentativas de engate não são mais que um processo de ganhar novos aderentes ao partido, aqui para nós uma tarefa ingrata. Cumprimentei-a com um aceno de cabeça, dei uma palmada amigável nas costas do Silva que se estatelou ao comprido de nariz no chão espirrando sangue por todos os lados, e pedi chás de camomila para os guarda-costas e um batido de cenoura para mim. O barman olhou para mim desconfiado, talvez a pensar o que faz aqui este gajo a estas horas da manhã, e tratou de aviar o pedido embora mais lentamente que o costume. Acendi o primeiro havano do dia e contemplei o trânsito lá fora que a essa hora já rondava o caos absoluto. Há anos que andava a perder o encanto das manhãs, o trânsito, as pessoas afogueadas para o trabalho, os transportes inchados de gente, as apitadelas, o barulho dos motores, a poluição atmosférica... e de repente dei por mim com uma vontade apocalíptica de escrever um poema, de aproveitar a manhã em qualquer actividade lúdica, de pedir desculpa às minhas ex-esposas por ter sido um mau marido. E estava eu nestas conjecturas quando entra pelo bar adentro o Elias, vermelho que nem um pimentão, e salta para cima de mim agarrando as bandas do meu casaco novo Vito Corleone e desata aos berros e aos insultos. Depois de umas valentes coronhadas desferidas pelos guarda-costas, é que acalmou e contou por entre os dentes recentemente partidos a causa da sua indignação.
Fraude! Gemeu ele. Há uma mega-fraude nas sondagens! E perderia de novo as estribeiras se os guarda-costas não estivessem atentos e o chamassem à razão com mais uns tabefes. Com alguma dificuldade o Elias lá me explicou que as empresas de sondagens estavam a prever a derrota do Partido nas eleições e isso só podia ser uma fraude ou manipulação dos inquéritos. Dei ordem aos guarda-costas para enxotarem o Elias dali para fora, apaguei o havano no batido, e de repente a inspiração poética deixou de o ser, sentido-me triste e irremediávelmente só. A manhã perdera o encanto e amaldiçoei o dia em que me levantara tão cedo. Estava eu cozendo estas maleitas no lume brando da minha auto-estima quando o telemóvel tocou. Era o presidente da Ordem dos Pato Bravos a reclamar o dinheiro que dera para a campanha. Se o Partido ia perder preferia finançiar o suposto vencedor. Desliguei-lhe o telemóvel e já este tocava de novo. Desta vez era o Supremo Banqueiro a avisar do congelamento da transacção prevista para ajudar a campanha, e que também preferia finançiar o vencedor das sondagens. Desculpou-se, pois militava no Partido, mas o SEU interesse nacional estava primeiro, e até já aderira ao Movimento Empresarial Liberal do Capital Unidos Venceremos.
Esmaguei o telemóvel com o tacão da bota texana, e saí do Boca na Botija completamente fora de mim. Os guarda-costas ainda me tentaram seguir mas o meu olhar assassino fê-los desistir. Comprei uma Uzi em 2ª mão, quatro carregadores e um cinto de granadas. Vesti o camuflado, enchi os bolsos com rações de combate e escondi-me no esgoto.
Ainda por cá ando, à espera do próximo Congresso do Partido...

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