quinta-feira, maio 08, 2008
Implosões
Outro dia discutia-se cá em casa sobre competências e incompetências profissionais, e vai eu com a minha ignorância acumulada de frustações de muitos anos atirei a bisca para o ar que tal coisa não existe, o que existem são apenas bons padrinhos. Os que sobram, competentes ou não, vão engrossar o leque salarial dos 500 € mensais e da mão de obra escrava para todo o serviço a qualquer hora e dia da semana. O que eu fui dizer! A prima da tia da minha cunhada empinou o corpete e arrotou que eu era um reles esquerdista-bloquista-comuna. O tio Aparício passou a gânfia pelo bigode de piassaba e atirou-me muito moderadamente um “se calhar não é bem assim...”. O rameloso do meu primo que é chucha desde que o Soares engavetou o socialismo, esticou o queixinho de puta na minha direcção e apontou o dedo acusador entre os meus olhos balbuciando impiedoso “És um cabrão, Ferdinando, e eu que tinha tanta esperança em ti!”. Ao ver o resultado da minha inocente opinião estar a formar contornos de peixeirada, e ainda por cima com a tia Isméria a rogar pragas e a rezar o terço implorando para que nos calássemos, atiçei ainda mais as hostes com um desenchabido “A vossa sorte é que não há oposição credível senão outro galo cantaria!”.
O tio Américo que ganha a vida a construir urbanizações com dois éles no nome tipo Villa ou Village, para justificar a venda a preços de luxo, cuspiu o havano para a carpete acabadinha de comprar na Moviflor e levantou um punho recheado de cachuchos na minha direcção enquanto vociferava colérico que eu não tinha o direito de ofender o único partido da oposição, PSD de seu nome, o único partido cujos apaniguados deram anos atrás ao país o desenvolvimento em forma de tiras de alcatrão e paletes de betão armado. Vai daí o chucha rameloso, meu primo por simples acaso familiar, puxou os galões da militância e atirou ao tio Américo com a defesa das liberdades democráticas e a adesão de Portugal à claque europeísta, coisa que pêéssedês e quejandos nunca se poderiam gabar. O caldo já estava entornado, e a alcatifa da Moviflor começou a arder no ponto onde o havano do tio aterrara depois da cuspidela. A avó Urzelina, pessoa experiente e sábia destas coisas, vazou a água do jarrão de porcelana que continha a última rosa murcha do dia da mãe do ano passado em cima das chamas, e com esse gesto simples e comedido pareceu pôr alguma água na fervura. Só aparência, porque na realidade O tio Américo inchava a sua vermelhidão sobre o rameloso, a prima-da-tia-da-minha-cunhada jurava a pés juntos que o Salazar haveria de regressar e pôr o país na ordem, o tio Aparício coçava a timidez disfarçada no seu sanitário bigode, a tia Isméria balbuciava histéricas hossanas à Irmã Lúcia, e eu de repente dei de caras com o ar de profundo gozo da prima Ossétia, que, alheia ao espectáculo, enrolou o seu braço do meu e me desviou dali para fora, quiçá para antros mais recolhidos e alheios à crise.
O que sei é que já não terei emprego na Mota-Engil, nem como trolha, e suspeito que alguém redigiu um novo testamento em que o meu nome de beneficiário foi irremediávelmente apagado. Mas resta-me o aconchego da minha querida prima Ossétia, só ela sabe a maneira de me levantar o moral. E bem aproveitada talvez até levantasse o país, quem sabe!
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