terça-feira, janeiro 03, 2006

A Sopa


A sopa é o chamado papão das criancinhas. Por mais que os ilustres medicine doctors insistam em dizer que a sopa faz bem, não se encontra uma única criança neste mundo que não torça o nariz só de tal ouvir falar. A sopa é o engano da burguesia, servida como caldinho de galinha deslavado em canecas de duas asas em vez da tradicional colher de sopa. A sopa, a verdadeira sopa, é a dos pobres: feijão com hortaliça e chouriço industrial. Não admira, pois, que a catraiada recuse a mistela. Pequena burguesia em ascensão, diz-se. Falta de educação alimentar, murmura-se. Afinal ninguém gosta de ser pobre, é preferível servir a sopa aos pobres. Um belo exemplo de serviço voluntário que as tias que recusaram a sopinha em pequenas gostam de fazer, uma espécie de caridadezinha mais ou menos vegetariana. Por isso se diz em determinadas situações que "levei sopa", ou seja querias lagosta suada mas levaste com o caldo verde da véspera. E ninguém vai servir lagosta ou caviar aos sem abrigo. Querias? Toma lá sopa! Até porque não soaria nada bem chamar àquilo "a lagosta dos pobres" ou o "caviar dos indigentes". Seria pouco ético, e além do mais o que faria aquela gentalha perante estas iguarias? Certamente exigiria muito mais e melhor, tipo sopa de tartaruga das Maldivas ou papas de ornitorrinco em molho bêchamel...
Mas todos sabemos que a falência espreita à porta destas titis de pacotilha, principalmente as que têm um sobrinho ou afilhado muito competente a gerir alguma empresa importante, e que são quase todas. Aqui, o mais certo é levarem sopa todos os dias lá do menino, que não dispensa a lagosta e o caviar à mesa, os passeios aos fins de semana pelas quintas do Alentejo em jipe BMW, com convidados VIP tipo João Talone, Miguel Cadilhe ou Fernando Ulrich. Enfim, a nata da sociedade, os tais que recusaram a sopa em pequeninos. E é assim que a nossa juventude vai progredindo, mandando a sopa pela pia abaixo. E embora alguns ainda não tenham posses para comer lagosta e caviar todos os dias, nem sequer quando o rei faz anos, sempre se vão enganando a comer umas lasanhas ou pizzas regadas a litros de coca-cola, enquanto os papás ou os amigos dos papás não os colocam a gerir qualquer negócio de interesse nacional subsidiado a contento de interesses particulares.
A sopinha é tudo o que resta a todos os outros, os tais que torçem o nariz só de nela ouvir falar mas que não têm outro remédio senão tomá-la às colheres. Um caso grave de neo-masoquismo, ou se quiserem, de auto-flagelação.
Mas como já não tenho nada a perder, ponham-me lá nessa sopa um pouco mais de feijão, alguma massa cotovelo, uma cenourinha esmagada, um tomatinho idem, um pedacinho de orelha e umas rodelinhas de chouriço caseiro e fiquem-se lá com essa merda da lagosta e do caviar, mais a puta da pizza e o caralho da lasanha, afoguem-se em coca-cola e champanhe francês, e deixem-me cá sózinho a levar a sopinha ao altar com um copinho de tinto e uma fatia de pão escuro.
São servidos? Vão comer ao tota...

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