quarta-feira, novembro 21, 2007

Leituras ao serão

A avó Urzelina, que já perdeu a conta aos anos mas que se bate ainda com uma boa feijoada a seguir a hora e meia de jogging diário, que lê os artigos de opinião do Pacheco Pereira, que gaba a nova dentadura do Paulo Portas e não perde pitada dos discursos do ministro Mário Lino, e que ainda tem tempo para gravar todas as telenovelas da TVI enquanto vê as da SIC, perdeu de repente as estribeiras e desatou aos tiros pela casa fora com a caçadeira que o avô lhe deixara antes de se refugiar em Vladivostok. “Fónix!, como é que uma fulana consegue aguentar isto?”, berrava a avó enquanto despejava mais uns cartuxos na direcção do gato Romeu que fugiu para a cave. Fiquei ali na dúvida se haveria de chamar o 112 ou avisar a prima Ossétia que estava de serviço na travessa do Deboche como é costume, mas por sorte os cartuchos esgotaram-se e a avó Urzelina desatou a partir o serviço de porcelana chinesa que o Presidente lhe tinha oferecido com a coronha da caçadeira. Depois do serviço feito em cacos e a caçadeira partida, a avó sentou-se ofegante na cadeira de balanço, e pediu-me um havano e uma dose generosa de tequila para acalmar.
Chegada a bonança, e por entre novelos de fumo do charuto e goles de tequila, a avó lá se abriu comigo, coisa rara nos tempos que correm. “Tédio, meu filho, tédio, nada mais que tédio. Já não consigo divertir-me com o Mário Lino, nem com os dentes do Portas, nem com as intelectualices do Pacheco Pereira, as telenovelas já são todas cópias umas das outras, o jogging deixa-me cansada e a feijoada provoca-me gases. Tédio, é só tédio.” Confesso que nunca tinha visto a avó naquele estado, e embora tenha tentado animá-la aconselhando-a a mudar as directrizes do seu gosto pessoal, por exemplo, trocar o Mário Lino pelo Van Zeller, o Portas pelo Castelo Branco, o Pacheco pelo Pedro Arroja, o jogging pelo kick-boxing, a feijoada por crepes chineses, e as telenovelas pelo Marcelo, a avó Urzelina recusou e foi ficando cada vez mais deprimida a cada sugestão minha.
Eis senão quando entra por ali adentro o Elias, angariador de militantes partidários em part-time e agente-secreto do patriarcado, empurrando um carrinho de supermercado atulhado até acima de resmas de folhas A4. Deixou-se cair ofegante na única cadeira disponível e falou para a avó: “Trago aqui 63500 cópias de documentos do Ministério da Defesa. Não me façam perguntas que eu também não sei responder. Com os cumprimentos de PP.” E saiu tal como tinha entrado: pela porta.
Agora as coisas voltaram ao normal. A avó largou a depressão num canto escuro, e passa agora os dias a ler as cópias do Ministério. Por vezes eu e a prima Ossétia ficamos ao serão a ouvir a avó ler em voz alta documentos altamente confidenciais e entre compras de submarinos usados que só submergem, petrodólares por debaixo da mesa, férias de luxo no Dubai, negócios de armas e diamantes, e até orientações sexuais de alguns líderes mundiais, por vezes não conseguimos conter as gargalhadas e até o gato Romeu ostenta aquele ar misterioso sempre que o serão se prolonga. Até a prima Ossétia está mais caseira e já me olha com aquele olhar que me arrepelava os cabelos da nuca antes de trabalhar na rua do Deboche.

quarta-feira, novembro 14, 2007

Poesia para os distraídos

No primeiro diploma,
Congelam as progressões,
Acabam os escalões,
E não dizemos nada.

No segundo diploma,
Aumentam o tempo das reformas,
Mexem com todas as normas,
E não dizemos nada.

No terceiro diploma,
Alteram o sistema de saúde,
Há um controlo amiúde,
E não dizemos nada.

No quarto diploma,
Criam-se informações,
Geram-se várias divisões,
E não dizemos nada.

No quinto diploma,
Passa a haver segredo,
As pessoas vivem com medo,
E não dizemos nada.

Até que um dia,
O emprego já não é nosso,
Tiram-nos a carne fica o osso,
E já não podemos dizer nada.

Porque a luta não foi travada,
A revolta foi dominada,
E a garganta está amordaçada.

(de autor anónimo)

segunda-feira, novembro 12, 2007

Segundas-feiras

Às segundas-feiras acordava com a sensação do incompleto. Alguma coisa faltava para que este dia fosse tão feliz como o sábado ou o domingo, ou, porque não, as tardes de sexta-feira. Levantava-me com alguma dificuldade e sono adiado e dirigia-me rastejante à casa de banho. Invariávelmente o espelho devolvia a imagem de um ser distorcido, repelente, um verme esponjoso ou insecto quitinoso saído de alguma metamorfose de Kafka. Nem a higiene matinal, por muito que esfregasse, escovasse, rapasse ou lavasse, conseguia devolver a minha vulgar aparência humana. E acontecia sempre às segundas-feiras. Às segundas-feiras a comida não tinha gosto, os sapatos não tinham graxa, as calças não tinham vinco, as camisas não tinham goma, o telemóvel não tinha rede.
Ia para o trabalho sonolento, ao volante do meu Bentley em quinta mão, único sobrevivente de heranças passadas para além do gato empalhado do avô. Gramava uma hora e meia de fila de trânsito, tal qual um carreiro de formigas parado e sem destino visível até deparar com o formigueiro fruto de depressões e abusos de poder. Os outros vermes e insectos (às segundas-feiras não era o único, felizmente) lá se distribuíam pelos buracos, ninhos, colmeias e até folhas de couve apodrecidas.
Mas o pior era aturar o Escorpião. O bicho tinha um feitio terrível, dava-se de ares e ameaçava tudo e todos com uma ferroada certeira. Por causa dele a Umbelina estava em estado vegetativo há dois meses, o Aniceto uivava à lua e o Remualdo afiava a faca de cozinha na pedra de amolar com o olhar assassino cortado pelas fagulhas, jurando vingança. De quê não sei.

Foi assim até ao dia do discurso. Por acaso a uma segunda-feira. O Presidente falou, e falou, e falou sem parar durante dezoito horas seguidas, e ao culminar as dezassete horas e cinquenta e nove minutos o Escorpião suicidou-se, autoferroando-se. De imediato a Umbelina passou de vegetal a animal, o Aniceto largou a atitude canina, o Remualdo guardou a faca de cozinha. Todos os seres repelentes entre os quais eu me incluía voltaram a ser os vulgares humanos de todos os dias excepto às segundas-feiras. O Presidente foi reeleito e com direito a estátua na Avenida Principal. O seu 1º decreto foi para revogar oficialmente as segundas-feiras do calendário.
Não sei porquê, mas agora tenho a sensação de que todos os dias são segunda-feira...

sexta-feira, novembro 09, 2007

Uma vida saudável

O Timoneiro apresenta mais um estudo altamente científico sobre as dificuldades de uma vida totalmente saudável. Não se sabe quem é o autor, mas é pouco provável que ele leia este blog, portanto...

Dizem que todos os dias temos que comer uma maçã para o ferro e uma banana para o potássio.

Também uma laranja, para a vitamina C, meio melão para melhorar a digestão e uma chávena de chá verde sem açúcar para prevenir a diabetes.Todos os dias temos que beber dois litros de água (sim, e logo a seguir mijá-los, que leva quase o dobro do tempo que se leva a beber).

Todos os dias temos que tomar um Activia ou um iogurte para ter 'L. Cassei Defensis', que ninguém sabe exactamente que merda é, mas parece que se ingerir um milhão e meio todos os dias começa-se a ver toda a gente com uma grande diarreia ou presos dos intestinos.

Cada dia uma aspirina, para prevenir os enfartes mais um copo de vinho tinto, para a mesma coisa. E outro de vinho branco, para o sistema nervoso. E um de cerveja, que já não me lembro para que era.

Se os tomarmos todos juntos mesmo que aconteça um derrame cerebral ali mesmo não nos
devemos preocupar pois o mais certo é que nem daremos conta disso.

Todos os dias temos que comer fibras. Muita, muitíssima fibra até que sejamos capazes de defecar uma camisolona bem grossa.

Temos que fazer quatro a seis refeições diárias leves sem esquecer de mastigar cem vezes cada garfada.

Ora, fazendo um pequeno cálculo apenas a comer vão-se assim de repente umas cinco horitas.Ah, depois de cada refeição deve-se escovar bem os dentes, ou seja:

depois do Activia e da fibra os dentes depois da maçã os dentes depois da banana os dentes e assim enquanto tivermos dentes, sem esquecer nunca de passar o fio dental massajador das gengivas e bochechar com PLAX...
Melhor, amplifica-se a casa de banho e põe-se a aparelhagem de música lá porque entre a água, a fibra, e os dentes vamos passar horas ali dentro, ou seja, quase metade do dia.
Equipa-se também de jornais e revistas para nos pormos a par do que se passa enquanto sentados na sanita.

Se temos que dormir oito horas e trabalhar outras oito, mais as cinco que usamos a comer, faz vinte e uma.
Restam três horas sempre que não surja algum imprevisto.
Segundo as estatísticas, vemos três horas de televisão diárias.
Bem, já não se pode porque todos os dias devemos caminhar pelo menos uma meia hora (dado por experiência: ao fim de 15 minutos é melhor para senão anda-se mas é uma hora!).
E há que cuidar das amizades porque são como uma planta: temos que as regar diariamente.
E quando vamos de férias também senão as plantas morrem.
Para além disso há que estar bem informado e ler pelo menos um dos jornais diários e outro de uma revista séria para comparar a informação.

Ah! E temos que ter sexo todos os dias mas sem caír na rotina: temos que ser inovadores, criativos, renovar a sedução.
Isso leva o seu tempo. E já nem estamos a falar do sexo tântrico!! ( A respeito disso, relembro: depois de cada refeição temos que escovar os dentes!)
Também temos que arranjar tempo para a maquilhagem, a depilação/fazer a barba, varrer a casa, lavar a roupa, lavar os pratos e já nem digo, os que têm gatos, cães pássaros e uma catrefada de filhos...

No total, a mim dá-me umas 29 horas diárias se nunca parar.
A única possibilidade que me ocorre é fazer várias destas coisas ao mesmo tempo: por exemplo, tomar duche com água fria e com a boca aberta, e assim beber logo os dois litros de água de uma vez.
Enquanto saímos do banho com a escova de dentes na boca, vamos fazendo o amor, o sexo tântrico, parado, junto ao nossa/o mais que tudo, que de passagem vê TV e vai contando o que se passa, enquanto varremos a casa.
Sobrou uma mão livre?
Telefona-se aos amigos e aos pais!
Bebe-se o vinho (depois de telefonar aos pais vai fazer falta!).
O iogurte com a maçã pode ser dado pelo par enquanto come a banana com a Activia.
No dia seguinte troquem.
E menos mal que já crescemos, porque senão tínhamos que engolir mais umas cerelacs e um Danoninho Extra Cálcio todos os santos dias.
Úuuuf!

E agora vou acabar porque entre o iogurte, o meio melão o primeiro litro de água e a terceira refeição do dia já não faço a mínima ideia o que é que estou a fazer porque preciso urgentemente de uma casa de banho.
Ah, vou aproveitar e levo comigo a escova de dentes...